Assédio judicial é afronta à democracia
Tem questões da nossa vida social que não podem ser tratadas de maneira personalista: ameaças à liberdade de imprensa são, sempre, ameaças à sociedade
Oi, pessoal!
Tem bastante coisa acontecendo no mundo: o Trump, a extrema-direita na França, o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro. Mas hoje eu peço licença para falar de um único tema nessa newsletter: o assédio judicial que venho sofrendo de uma deputada federal bolsonarista.
E peço que não leiam nem tratem isso como algo que diz respeito somente a mim, porque o assédio judicial de agentes públicos, em especial de políticos com máquina e mandato, é uma ameaça grave à democracia.
Senta aqui pra gente conversar?
Essa sou eu e hoje eu também sou pauta (Foto: Jéssica Michels)
1 - Como tudo começou
Indignação - No ano passado eu comecei a me indignar com muitas coisas que vinham ocorrendo no Estado sem grande repercussão na imprensa. Uma delas era o mandato de parlamentares extremistas catarinenses que nunca geravam pauta - ou, quando geravam, eram mera reprodução de releases. Um dos mandatos que mais me chamava atenção, obviamente em razão da estridência e violência das pautas e das redes, era o da criciumense Júlia Zanatta.
Ação - Eu sabia que ela processava bastante gente e que celebrava alguns acordos e vitórias na justiça humilhando seus “escolhidos”. Nunca entendi a conivência de jornalistas e comunicadores com essa prática que não é comum na política. E comecei a procurar mecanismos para, por meio de informação qualificada, expor seus gastos e (falta de) ações.
O que descobri - Descobri, em pouco tempo, que Julia Zanatta investe alto em divulgação de atividade parlamentar, operando com diversos fornecedores diferentes, e sempre gerando notas fiscais vagas e genéricas. Ela paga sempre mais de uma empresa para “alimentar” suas redes sociais.
Certa vez, acionei-a via lei de acesso à informação a respeito de um dos fornecedores, ao que me responderam: “todos os prestadores de serviço atuam de forma conjunta, realizando atividades tais como, não se limitando a: elaboração de textos, revisão de textos, produção de materiais, etc. Ou seja, não é possível precisar em que conteúdo ou em que informação efetivamente cada prestador teve parte, vez que tudo é executado de forma dinâmica".
Bom, qualquer pessoa que trabalhe com comunicação sabe que essa declaração foi simplificada. Os prestadores de serviço atuam conjuntamente? Como? Eles não sabem dizer quais conteúdos foram produzidos por quais agências? Mas que confusão é essa com o dinheiro público?
O que publiquei - Como eu não sou órgão de controle, dei vazão a conteúdos em que identificava claramente alguma pauta jornalística. Foi o caso desse tweet que ela tentou censurar e pelo qual me processa. Ora, eu usei uma nota fiscal que o gabinete dela emitiu e fui verificar o que o fornecedor apresentava. Um jornal havia recebido de uma parlamentar o total de R$5 mil e produzia notícias positivas sobre ela. É um fato simples e facilmente verificável.
Não foi assim, não - No meu tweet, além da nota fiscal, havia o print de uma das notícias com o nome da deputada em uma manchete que sugeria que ela havia beneficiado empresários atingidos por cheias. Na verdade, a medida é uma das práticas da Receita Federal após cidades emitirem decretos de calamidade pública.
"A edição de portaria de prorrogação pela Receita Federal do Brasil é sempre condicionada à publicação do decreto estadual que reconhece o estado de calamidade pública em determinados municípios da respectiva região", explicou a Chefe de Gabinete da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, Mirian Takada, em resposta aos questionamentos que eu enviei via Lei de Acesso à Informação, perguntando diretamente o que a deputada tinha a ver com a medida.
Essa publicação do jornal pago com dinheiro público aconteceu em meio a uma crise do mandato de Júlia Zanatta, que vinha sendo cobrada por não ajudar o Estado e os cidadãos nas enchentes e por fazer viagem internacional com pauta deslocada dos interesses de Santa Catarina. Era uma clara tentativa de mostrá-la como responsável por uma ação que, na verdade, não era sua, mas do Governo Federal, amparado em legislação própria sobre isso.
2 - Repercussões
Furei a bolha - O tweet repercutiu bastante e foi parar em diversas publicações e perfis de redes sociais. Imediatamente, Julia Zanatta me ameaçou de processo. E fez isso de forma bem escancarada. Um suposto repórter me procurou e produziu essa pérola dizendo que ACUSEI um jornal de receber um dinheiro que ele recebeu!
Na sequência, o jornalista Leonel Camasão descobriu e publicou que o proprietário do jornal que a deputada havia pagado tinha sido condenado por tráfico de drogas. Ela nos processa juntos em uma ação criminal por conta disso.
Tudo isso aconteceu no fim do ano, enquanto eu estava em viagem e abalada emocionalmente pela doença do meu cachorro, que morreu poucos dias depois. Mesmo assim, não temi em nenhum momento lidar com as consequências do que eu apurei e publiquei. São dados públicos e qualquer pessoa poderia chegar a esse fato sem precisar de muitos cliques.
Intimidação - A parlamentar entrou com diferentes processos para calar algumas pessoas que repercutiram meu tweet. Todos esses processos estão correndo, gerando custos para a justiça e prejuízos a pessoas que se deram ao luxo de criticar um gasto mal aplicado de uma parlamentar paga com dinheiro público.
Censura - Como fez no meu processo, Julia Zanatta tentou censurar outros posts e tweets que vieram como decorrência desta apuração. A motivação tem configuração bastante clara de assédio judicial, é o que dizem os especialistas que me defendem e também a Associação Brasileira de Jornalistas Investigativos (Abraji). O que ela tenta com tudo isso é evitar que as pessoas fiscalizem suas notas no portal da transparência, disseminem esses gastos, confrontem seus fornecedores e critiquem sua (rasa/rara) ação parlamentar.
3 - Assédio judicial é problema nosso
Jurídico - Nos dois processos, tenho suporte jurídico do escritório Flora, Matheus & Mangabeira Sociedade de Advogados, do Rio de Janeiro, e com apoio da Abraji e da Media Defence, organização não governamental do Reino Unido.
"Infelizmente não se trata de um caso isolado, a deputada Júlia Zanatta utiliza reiteradamente o Judiciário contra jornalistas e comunicadores que reportam criticamente sobre ela", explica Lucas Mourão, um dos advogados do caso.
"A nosso juízo, seu objetivo não é exatamente buscar uma reparação legítima, mas sim fazer do próprio processo judicial uma arma para amedrontar a imprensa; é um claro típico de assédio judicial", completa.
Segundo Mourão, publiquei uma informação pública sobre um assunto de interesse público. Esta, de acordo com ele, é uma "circunstância obviamente protegida pelos direitos à liberdade de expressão e de imprensa, e também pelo direito de informação, que é uma garantia não só da jornalista em questão, mas sobretudo da sociedade".
Abraji - O caso em que a parlamentar pede minha condenação por divulgar uma nota fiscal paga a um jornal faz parte das ações monitoradas pela Abraji. A instituição caracteriza os casos como assédio judicial por serem "estratégia processual de autor litigante contumaz" e pela "disparidade de armas".
"Se hoje nos parecem impensáveis a designação de agentes de censura estatal para atuarem dentro de redações de jornais, ou as prisões arbitrárias de repórteres e editores, como acontecia em regimes ditatoriais que há pouco deixamos para trás, nem por isso devemos ignorar que há outras formas de ameaça à livre circulação de informação e de ideias. Formas que se valem do uso impróprio de ferramentas democráticas para atingir os mesmos intentos censores", argumenta a entidade no relatório sobre os casos de assédio.
Silêncio ensurdecedor - Tenho recebido muito apoio da rede que construí no Twitter, de amigos próximos e de pessoas que reconhecem meu compromisso ético com a informação. Recebo apoio também de quem percebe a óbvia ameaça à democracia por trás do assédio judicial praticado pela deputada.
Porém, há um silêncio ENSURDECEDOR entre colegas jornalistas na ativa no Estado e também por parte de um órgão com o qual eu colaborei voluntariamente no último ano: a Associação Catarinense de Imprensa. Será que eles acham que esse é um problema meu? Qual o motivo da cegueira que acomete tanta gente ao mesmo tempo, que não permite que percebam que dinheiro e máquina pública estão sendo usados por uma parlamentar do Estado para ameaçar e intimidar jornalistas e cidadãos?
4 - O que fica disso tudo?
Que vivemos um deserto de informações em redutos bolsonaristas é cada vez mais claro e notável. E é nesse deserto que o assédio judicial se firma como uma estratégia clara de silenciar os poucos comunicadores/jornalistas dispostos a apresentar fatos que exponham um movimento político que se pauta pela má gestão do dinheiro público, pela estridência nas redes, pela disseminação da desinformação e pela intolerância à diversidade, à justiça social e aos direitos humanos.
Mesmo que eu seja a única disposta a fazer isso por aqui (e sei que eu não sou), vou continuar. A tentativa de me calar, intimidar e silenciar, tem efeito reverso: sigo dormindo em paz e fortalecida na direção de uma informação de qualidade e emancipadora. E, claro, plenamente confiante na justiça, na democracia e no estado democrático de direito.
Se você acha essa causa justa, compartilhe e fortaleça essa nossa rede.
Semana que vem eu volto no formato original ;-)