Dois especialistas e três perguntas sobre causas e consequências da mentira do PIX
Hoje não é dia de cartinha, mas quero dividir com vocês o que dois amigos feras em Direito e Comunicação têm a dizer sobre política, informação, justiça e o caso do PIX
Oi, gente!
Amanhã cedo vocês vão receber minha cartinha de praxe, mas hoje quero compartilhar a íntegra de duas entrevistas que são matéria prima para ela.
Enviei três perguntas para dois pesquisadores com vasto conhecimento em debates sobre desinformação para ampliar as possíveis análises sobre as causas e consequências das mentiras sobre uma inexistente taxação do PIX no Brasil.
Ao André Matheus, advogado e consultor jurídico, doutorando em Direito (PUC-RJ), com mestrado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, preparei perguntas sobre como parlamentares e agentes públicos podem ser responsabilizados pela desinformação.
À Lívia Vieira, doutora e mestre em Jornalismo, pesquisadora, professora da Universidade Federal de Bahia (UFBA) e uma das editoras na Farol Jornalismo, perguntei sobre como a comunicação pode ajudar a entender e a enfrentar esse fenômeno.
O que eles disseram está logo aqui abaixo. Sugiro que compartilhem, mas amanhã vou trazer alguns desses pontos novamente para nossa conversa semanal ;-)
Lógica das plataformas contribui para a desinformação
1 - Como conter a onda de desinformação que se espalha no Brasil via plataformas?
Lívia Vieira - Arrisco dizer que, diante da lógica como operam hoje as plataformas, é praticamente impossível. O cenário que se avizinha é inclusive pior. No caso da Meta, os poucos mecanismos de contenção da desinformação foram extintos, algo que já acontecia no X de Elon Musk. Já há estudos que mostram que os usuários do Community Notes do X são motivados por partidarismo e que até 90% das notas da comunidade nunca são exibidas no X. A agência Lupa fez um levantamento que concluiu algo muito parecido: somente 8% das notas da comunidade em português no X chegam aos usuários. Outro fator que nos desestimula a pensar numa contenção é que as plataformas lucram muito com a desinformação, por meio do impulsionamento dos posts. O pagamento para que os conteúdos (sejam eles verdadeiros ou não) cheguem a mais pessoas é estratégia fundamental da extrema-direita, que faz o modelo de negócios das plataformas dar tão certo.
2 - Quais você considera as principais diferenças na forma como a direita e a esquerda usam essas plataformas de distribuição de conteúdo?
LV - Eu discordo do raciocínio simplista de que a extrema-direita entendeu como funcionam as redes sociais e a esquerda parou no tempo, está obsoleta. Entender como funcionam as redes sociais é fazer parte de uma lógica que amplia desigualdades, distribui desinformação e captaliza em torno do engajamento pela emoção - normalmente o medo e a raiva. Se isso é ser esperto e entender a lógica das redes, realmente espero que a esquerda nunca se renda a isso.
Não podemos esquecer que uma das coisas que mais diferencia a esquerda da extrema direita brasileira é o apreço pelos direitos das minorias e por uma sociedade mais justa. Dito isso, a meu ver, a esquerda precisa parar de apenas reagir e passar a ser agente no processo de comunicação.
Isso passa por estratégias criativas, éticas, com foco na explicação acessível das ações e fatos. O problema é que a comunicação não-violenta, positiva, não engaja como a comunicação feita para gerar medo e revolta. O vídeo do deputado Nikolas Ferreira é a prova disso: o fundo preto, a trilha, o tom de apreensão.
Então, meu ponto é: liderar um discurso em prol de ações pode não ter o mesmo engajamento do discurso da extrema-direita, baseado no medo e na raiva. Mas existem estratégias de persuasão e de conversação que devem mirar a qualidade das interações, e não a quantidade. Hoje, parece que o governo apenas assiste e reage. Isso é que precisa mudar.
3 - É possível acreditarmos num debate público que se construa sem a interferência direta dessas redes em nosso cotidiano?
LV - A única saíde é transformar a internet para perto do que ela era quando foi criada por Tim Berners-Lee. Ele mesmo tem trabalhado em um projeto para “devolver a internet às pessoas”, o que passa pela retomada do controle sobre nossos dados pessoais e muito mais transparência.
No entanto, é uma batalha enorme frente a grandes conglomerados de mídia como os Big Five (Microsoft, Apple, Meta, Amazon e Alphabet), que são proprietários de produtos e serviços largamente utilizados mundo afora. Hoje, o que temos é a plataformização não só do jornalismo, mas da sociedade.
No livro Platform Society, Van Dijck, Poell e De Waal mostram como as plataformas penetraram o coração das sociedades, causando desrupção de mercados, relações de trabalho, práticas sociais e cívicas, o que, em última instância, acaba afetando processos democráticos. É esse o nosso momento atual e, pelo menos por enquanto, é difícil vislumbrar uma mudança substancial.
Quando parlamentar sabe que está divulgando mentira, pode haver responsabilização
1 - É possível, do ponto de vista jurídico, penalizar deputados que disseminam desinformação?
André Matheus - O Supremo Tribunal Federal (STF) possui um histórico consolidado de antecedentes sobre o tema, nos quais afirmava que manifestações e ofensas proferidas no âmbito do Parlamento estavam protegidas pela imunidade material absoluta, independentemente de estarem ou não vinculadas ao exercício das funções parlamentares. Nesses casos, não seria cabível a instauração de ação penal, restringindo-se a aplicação de medidas internas em situações de abuso das prerrogativas parlamentares.
Cito como exemplos, “Ante a imunidade prevista no art. 53 da Carta Federal, a utilização da tribuna da Casa Legislativa, considerado certo contexto ligado a frustrada CPI, apontando-se corrupção em órgão público, não enseja ação penal. [Inq 2.815 AgR-ED, rel. min. Marco Aurélio, j. 25-11-2009, P, DJE de 18-12-2009.]”; “A cláusula de inviolabilidade constitucional, que impede a responsabilização penal e/ou civil do membro do Congresso Nacional, por suas palavras, opiniões e votos, também abrange, sob seu manto protetor, as entrevistas jornalísticas, a transmissão, para a imprensa, do conteúdo de pronunciamentos ou de relatórios produzidos nas Casas Legislativas e as declarações feitas aos meios de comunicação social, eis que tais manifestações – desde que vinculadas ao desempenho do mandato – qualificam-se como natural projeção do exercício das atividades parlamentares. [Inq 2.332 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 10-2-2011, P, DJE de 1º-3-2011.]”; e “A divulgação, em informativo eletrônico gerado em gabinete de deputado federal, na Câmara dos Deputados, de fatos que, em tese, configuram crimes contra a administração pública, não pode ser tida como desvinculada do exercício parlamentar, principalmente quando tais fatos ocorrem no Estado que o parlamentar representa no Congresso Nacional. [Inq 2.130, rel. min. Ellen Gracie, j. 13-10-2004, P, DJ de 5-11-2004.]”
Além disso, no entendimento da Corte, para quando as ofensas são proferidas fora do ambiente legislativo, seria necessário averiguar se há conexão direta com o exercício do mandato ou com a condição de parlamentar. Temos o seguinte julgado: “A garantia constitucional da imunidade parlamentar em sentido material (CF, art. 53, caput) – destinada a viabilizar a prática independente, pelo membro do Congresso Nacional, do mandato legislativo de que é titular – não se estende ao congressista, quando, na condição de candidato a qualquer cargo eletivo, vem a ofender, moralmente, a honra de terceira pessoa, inclusive a de outros candidatos, em pronunciamento motivado por finalidade exclusivamente eleitoral, que não guarda qualquer conexão com o exercício das funções congressuais. [Inq 1.400 QO, rel. min. Celso de Mello, j. 4-12-2002, P, DJ de 10-10-2003.]”
É importante ressaltar que muitos dos antecedentes históricos do STF foram proferidos em um contexto anterior à expansão das redes sociais e ao uso dessas plataformas por membros do Congresso Nacional. Nesse período, a análise do tema era mais clara, limitando-se à distinção entre manifestações ocorridas no espaço físico das Casas Legislativas e aquelas realizadas fora desse ambiente.
Assim, nos anos 10 e 20 desse século a Corte, buscando entender o fenômeno das redes sociais, o uso malicioso para manipulas massas e buscar a abolição do estado democrático de direito, começou a preferir decisões demonstrando um novo entendimento. Cito um julgado do Ministro Fux que menciona expressamente redes sociais: “O animus difamandi conduz, nesta fase, ao recebimento da queixa-crime. a) A imunidade parlamentar material cobra, para sua incidência no momento do recebimento da denúncia, a constatação, primo ictu occuli, do liame direto entre o fato apontado como crime contra a honra e o exercício do mandato parlamentar, pelo ofensor. A liberdade de opinião e manifestação do parlamentar, ratione muneris, impõe contornos à imunidade material, nos limites estritamente necessários à defesa do mandato contra o arbítrio, à luz do princípio republicano que norteia a CF. A imunidade parlamentar material, estabelecida para fins de proteção republicana ao livre exercício do mandato, não confere aos parlamentares o direito de empregar expediente fraudulento, artificioso ou ardiloso, voltado a alterar a verdade da informação, com o fim de desqualificar ou imputar fato desonroso à reputação de terceiros. Consectariamente, cuidando-se de manifestação veiculada por meio de ampla divulgação (rede social), destituída, ao menos numa análise prelibatória, de relação intrínseca com o livre exercício da função parlamentar, deve ser afastada a incidência da imunidade prevista no art. 53 da CF. [Pet 5.705, rel. min. Luiz Fux, j. 5-9-2017, 1ª T, DJE de 13-10-2017.]” e, por fim, um julgado do Ministro Moraes: “Não incidência da imunidade parlamentar prevista no caput, do art. 53, da Constituição Federal. A jurisprudência da CORTE é pacífica no sentido de que a garantia constitucional da imunidade parlamentar material somente incide no caso de as manifestações guardarem conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão desta; não sendo possível utilizá-la como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas. As condutas praticadas pelo parlamentar foram perpetradas em âmbito virtual, por meio da publicação e divulgação de vídeos em mídia digital ("YouTube") durante todo o dia, com constante interação do mesmo, situação que configura crime permanente enquanto disponível ao acesso de todos, ainda que por curto espaço de tempo, permitindo a prisão em flagrante do agente. [INQ 4.781 Ref, rel. min. Alexandre de Moraes, j. 17-2-2021, P, DJE de 14-5-2021.]”
Assim, se perceber que a nossa mais alta Corte tem entendimento consolidado de que, quando palavras e discursos não cobertos pela liberdade de expressão e imunidade material do parlamentar, pode-se instaurar um inquérito, para apuração dos fatos, e ação penal, para responsabilização de possíveis crimes.
2 - Como lidar com a questão da imunidade parlamentar quando há deputados que sabidamente impulsionam conteúdos falsos para minar o debate público
AM - O tema do discurso que é protegido pela liberdade de expressão e o que não é é o problema do nosso século. As notícias falsas, ou como entendemos melhor, notícias fraudulentas, trazem em seu escopo ofensas diretas a grupos, manipulando contextos ou fatos. Em sua maioria essas notícias acarretam crimes contra honra e, de forma indireta outros crimes. Esses discursos manipuladores não estão cobertos pela liberdade de expressão.
Um constitucionalista dos EUA, Jeremy Waldron, país conhecido pela proteção histórica da liberdade de expressão, propõe em seu artigo “Dignity and Defamation: The Visibility of Hate.”, que expressões de ódio devem ser proibidas pelo direito quando há difamação de grupos. Como demonstrado acima, o STF não reconhece imunidade parlamentar quando há ofensas a grupos minoritários e não demonstrem relação direta com o labor parlamentar.
Ademais, quando há incitação direta a crimes, como a abolição ao Estado Democrático de Direito, uma vez demonstrado os indícios de autoria e materialidade do delito, não será imunizado pelo exercício parlamentar.
3- Como assegurar que haja rigor na fiscalização de fake news sem que haja riscos à liberdade de expressão?
AM - Nessa liberdade de expressão em tempos de cólera, a tarefa de discernir o discurso protegido pela liberdade de expressão é complexa. Acredito que o STF deu balizas em recentes julgados como o da ADI 7055 e a doutrina da malícia real. Assim, caso o sujeito que propaga uma informação: 1) soubesse que era falsa ou 2) agisse com imprudente desconsideração pela verdade, pode-se aduzir que teve o dolo ou a culpa de propagar notícia fraudulenta.
No entanto, cabe diferencia as notícias fraudulentas do mero erro. Muitos podem propagar uma notícia fraudulenta sem entender a parte técnica por traz. Como exemplo, o recente caso da taxação do PIX. Caso tivéssemos uma “taxação” seria um imposto compulsório sob transações financeiras, ou seja, deveria ter uma lei votada pelo Congresso e somente depois de um lapso temporal poderia ser cobrada. Quem não possui o conhecimento técnico acreditou que em um ato da receita poderia ser realizada essa “taxação”, mas parlamentares e demais sujeitos com mínima capacidade técnica que pudessem perceber a falsidade do discurso e, mesmo assim propagou, poderia ser imputado o dolo de propagar.
Por fim, deve ressaltar que o Código Penal não tipifica um suposto crime de “Fake News”, no entanto, no Código Eleitoral, em seu artigo 323, proíbe expressamente qualquer pessoa de divulgar, na propaganda eleitoral ou durante o período de campanha, fatos sabidamente inverídicos em relação a partidos políticos ou a candidatos, capazes de exercer influência perante o eleitorado. Ou seja, a legislação eleitoral brasileira contém dispositivos que punem criminalmente quem espalha notícias fraudulentas e mentirosas pela internet ou pelas mídias tradicionais. Assim, muitas das vezes, em contextos não eleitorais, pode ser difícil enquadrar uma notícia fraudulenta em um tipo penal especifico, mas sendo um servidor público resta a responsabilização da lei de improbidade administrativa.