'Guerra cultural' até na ciência: pesquisadores ficam sem bolsa por não estudarem o que o governo de SC quer
Sim, voltamos à Idade Média...e se o negacionismo da pandemia sob Bolsonaro foi assustador, em SC o resquício do quase falido bolsonarismo agora mostra suas garras à ciência
Oi, gente! Tudo bem?
Por aqui, aquele clima de abafamento de fim de primavera/início de verão, com sufoco de retorno ao trabalho (estive de licença nos últimos meses). Não sei como dei conta de vir falar com vocês hoje, mas meu compromisso com essa audiência e com essa cartinha é real e concreto. Além do que, assuntos não faltam e as pautas não param de chegar: seguimos em mais uma temporada de Brasil Tenso, agora com o projeto de anistia a golpistas recomeçando a sua tramitação na Câmara, no modo Lira em campanha.
Mas tem mais: teve parlamentar catarinense votando “a rodo” contra a taxação de milionários na Câmara, além daquele clima meio fúnebre entre nós, do campo progressista, pós-eleições 2024, em que quem venceu mesmo foi quem não tem lado algum (ou tem, e sempre está ao lado do poder). E vamos de centrão nas maiores cidades do país.
Bora de barra de rolagem, que hoje o assunto é aquele que faz a gente embrulhar o café da manhã.
(Antes, uma notícia de última hora, que chegará aí não tão de última hora assim: enquanto fechava essa cartinha, saiu a condenação dos executores do assassinato de Marielle Franco. Ronnie Lessa e Élcio Queiroz foram condenados a 78 anos e 59 anos de prisão. Seis anos depois, uma dose de justiça).
1 - Deu ruim
O fantasma do bolsonarismo odeia o conhecimento (Imagem criada por IA)
Ciência é o que eu defino - A Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação de Santa Catarina (Fapesc), principal órgão de fomento à ciência no Estado, foi alvo de uma representação feita pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência ao Ministério Público após se recusar a financiar pesquisas que haviam sido contempladas com recursos para bolsas de mestrado e doutorado. Os estudos versam, em sua maioria, sobre gênero, sexualidade e política.
“Os motivos para o indeferimento tiveram como base critérios opacos, genéricos e dissociados da natureza universal dos Editais", pondera o documento assinado pelo presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, e remetido ao Ministério Público de Santa Catarina. A denúncia da entidade se refere a três editais lançados pela Fapesc - todos regidos por uma mesma resolução: a de que a seleção e indicação de bolsistas seria de responsabilidade dos Programas de Pós-Graduação, observados os seus requisitos específicos.
Isso significa que, uma vez selecionados pelos editais, os programas teriam autonomia para conceder as bolsas a partir dos seus critérios. Porém, o que aconteceu na prática foi diferente. “Ao longo do mês de agosto, alguns PPGs contemplados nos editais receberam correspondência da Fundação recusando o aporte de recursos para os/as bolsistas indicados, argumentando falta de ‘correlação direta entre os temas dos projetos e o desenvolvimento regional do Estado'".
Política e gênero - A Fapesc recusou o financiamento de uma pesquisa que se propõe a estudar o que foi o movimento e quem eram as mulheres manifestantes contrárias ao presidenciável Jair Bolsonaro nas eleições em 2018. Também disse não à investigação que trataria do turismo LGBT em Florianópolis. Pesquisa sobre uma pedagogia dissidente do teatro com crianças também foi considerada sem correlação com os projetos do Estado.
Segundo a representação, pelo menos 16 propostas de pesquisas de universidades públicas tiveram o financiamento recusado. Eles “têm, em comum, relação com o campo de estudos de gênero e sexualidades e suas intersecções com estudos sobre movimentos sociais e ativismos, direitos humanos, vulnerabilidade social, direitos reprodutivos, saúde pública e coletiva", aponta a SBPC.
Preocupação - Em setembro, a SBPC já havia manifestado sua preocupação sobre o que chamou de “critérios não acadêmicos adotados pela Fapesc". “Vários projetos foram descartados, por razões políticas. Por isso mesmo, a SBPC expressa sua convicção de que a Fapesc deva rever tais critérios, não tomando nenhuma decisão que não esteja baseada em razões solidamente científicas".
Além dos editais para a concessão de bolsas aos programas de pós-graduação, a Fapesc também tem editais temáticos e universais para o financiamento de pesquisas acadêmicas. Um deles, cujo resultado final foi divulgado na terça-feira, 29 de outubro, foi voltado exclusivamente para instituições particulares do Estado e que integram a Acafe, associação de universidade comunitárias. Entre os contemplados, há financiamento previsto para estudos em direitos humanos, políticas públicas e educação, o que mostra que tais temas não são excluídos automaticamente pelos avaliadores e que não deixam de ter “correlação direta” com o “desenvolvimento regional do Estado".
Um edital exclusivo para mulheres também teve seu resultado divulgado em setembro. O único trabalho com a temática de estudos de gênero e misoginia foi indeferido. A proponente também é pesquisadora de uma universidade pública. Estudos sobre política e educação, por outro lado, também foram contemplados.
Nota de repúdio - O Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina, citado na representação da SBPC como um um dos maiores centros interdisciplinares de estudo da área no Brasil e na América Latina, se pronunciou sobre o tema por meio de uma nota de repúdio assinada em setembro.
“Entendemos que a censura a temas relativos a gênero e sexualidades ou a temas políticos vai contra a liberdade de cátedra, e contra o livre desenvolvimento da ciência. Os estudos sobre inovação científica mostram, justamente que a diversidade é extremamente favorável à inovação. Além disso a própria FAPESC destaca a importância dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, que contemplam de forma muito clara as pautas dos direitos humanos, dos direitos das mulheres e meninas, bem como da democracia e os direitos políticos", alegaram no texto.
Dinheiro no caixa - Segundo o portal da transparência do governo de Santa Catarina, o fomento a pesquisa via Fapesc tem orçamento de mais de R$176 milhões, dos quais R$67,4 milhões foram liquidados. Para bolsas, haveria mais de R$ 40 milhões além do que já foi pago. Para 2025, o projeto de lei orçamentária enviada pelo governo à Assembleia prevê um valor de R$ 52,4 milhões para o pagamento de bolsas. O valor é maior do que o inicialmente previsto para 2024, mas menor do que a cifra atualizada ao longo do ano.
2 - Vi no Jornal
A notícia também repercutiu no Sul 21 e na Folha de São Paulo, mas por enquanto não há repercussão na mídia local.
Enviei as seguintes perguntas à Fapesc: 1 - Como são definidos os temas dos editais específicos de fomento à pesquisa da Fapesc?; 2 - Por que a Acafe recebeu um edital específico para seus pesquisadores, considerando que ela pode concorrer nos demais editais, respeitados os critérios?; 3 - Como é feita a escolha dos pareceristas?; 4 - Uma denúncia foi remetida pela SBPC apontando que o estado está usando critérios ideológicos para recusar bolsas de pós-graduação, de onde veio essa decisão e quem determina tais critérios?; 5 - Como o governo justifica a injeção de recursos de pesquisa na iniciativa privada, como nos editais para startups, indústria e mesmo para a Acafe?
A fundação ignorou meus questionamentos e respondeu somente ao ponto 4, por meio de nota, que reproduzo na íntegra:
A FAPESC informa que os projetos submetidos aos Editais 18/19 e 20/2024, no âmbito do Programa de Fomento à Pós-Graduação, não foram contemplados por não apresentarem alinhamento com os objetivos descritos no primeiro parágrafo dos editais: a descrição clara de que visam promover o desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação em Santa Catarina.
A análise rigorosa foi realizada pelo Comitê Permanente de Acompanhamento, que constatou que os temas propostos não atendem às diretrizes estabelecidas, por não priorizarem temas relacionados com a inovação.
Entre os projetos dos editais 18, 19 e 20/2024 encaminhados para a FAPESC que não foram admitidos para fomento estão títulos como: “Subjetividade Pornô: do capitalismo disciplinar a era farmacopornográfica”; “Morrer de Prazer, morrer por amor, matar de prazer, matar por amor, prazer e morte em A Volúpia do Pecado, Copacabana Posto 6 e a Noite tem mais luzes, de Cassandra Rios”; e “Defensorias Públicas na América Latina: O caso da Defensoria LGBT em Buenos Aires”.
As propostas rejeitadas não só não tinham correlação com os ecossistemas de tecnologia e inovação de Santa Catarina como, em muitos casos, nem ao menos uma relação com o próprio estado catarinense.
Os Programas de Pós-Graduação das instituições poderão substituir os projetos não admitidos até janeiro de 2025. A FAPESC reafirma seu compromisso com o apoio à ciência e inovação, sempre mantendo o diálogo aberto com a comunidade acadêmica e os demais interessados.
Relevante destacar o número atualizado de 1020 bolsistas (outubro de 2024) nesses programas de Pós-Graduação em diversas áreas do conhecimento, alinhadas com a Política Catarinense de CT&I.
A equipe da FAPESC permanece à disposição para quaisquer esclarecimentos.
Apesar de se dizer à disposição para quaisquer esclarecimentos, a assessoria de comunicação não respondeu quais critérios o comitê permanente de acompanhamento utilizou para definir quais bolsas seriam proibidas, mas informou que este comitê é formado pela presidência, diretores e gerentes (a partir de cada edital).
3 - De olho neles
Jovem Pan mais rica - A Jovem Pan recebeu uma bolada de R$ 286 mil dos cofres públicos de Santa Catarina. Os mesmos que rejeitam bolsas por critérios ideológicos alegando que não cumprem interesses regionais investem em mídia num veículo que também não compreende a região. Coincidentemente (ou não) os valores foram pagos menos de três meses depois de o governador Jorginho Mello dar uma entrevista ao programa Pânico , do grupo.
Não foi - O governador Jorginho Mello viajou para São Paulo para dar entrevista a Jovem Pan, mas não foi capaz de participar de uma reunião sobre segurança pública entre o presidente Lula e os governadores dos estados. Ele e Romeu Zema, de Minas Gerais, foram as únicas ausências do encontro.
4 - Craque do jogo
Evandro Leitão - O prefeito eleito do Ceará venceu uma batalha dura mesmo terminando o primeiro turno em segundo lugar. O único petista a sair vitorioso nas capitais neste segundo turno derrotou o bolsonarista André Fernandes em disputa acirrada. André Fernandes foi expostos na Internet nas últimas semanas com seus discursos machistas e misóginos, desdenhando inclusive da violência contra as mulheres e do feminicídio.
5 - Considerações afinais
Divulguei no meu twitter e no Instagram uma denúncia sobre determinação do Hospital Florianópolis quanto ao uso dos banheiros da emergência. Durante a semana, os banheiros foram trancados com chave e a orientação era para que os servidores não aceitassem que pessoas em situação de rua acessassem o local. A determinação mudou, mas é necessário que assuntos como estes sejam tratados com seriedade.
E como aquilo que é público merece ser visto e compartilhado, deixo como despedida o meu convite a vocês para participarem da Semana de Pesquisa, Extensão e Inovação da UFSC, quando a universidade fica mais aberta e cheia de programações para todo mundo. Bora lá?
Vou nessa, gente! Fiquem muito bem e até já já.