Vereador é perseguido após denunciar segregação racial em creche
Com um terreno cada vez mais fértil ao extremismo radical, SC tem novos episódios que indicam tempos difíceis para quem resiste
E aí, meus amigos!
Como vocês estão?
Por aqui, um pouquinho de glitter e de confete numa mão e a caneta na outra, porque o feriado também vai ser de trabalho. Nessa semana, surgiram oportunidades muito legais para fazer o que gosto e acredito.
Mas, como sempre, a semana não foi das mais fáceis no quesito "notícias". Nem mesmo o clima de festa e alegria que já começa a pairar no ar consegue sufocar essa sensação incômoda de que estamos vivendo um momento de notória crise nos valores humanísticos.
A sensação é de que estamos vendo um mergulho cada vez mais radical em uma onda que teve seu ápice, no Brasil, em 2018, mas que agora quer varrer o mundo com força. E aquele que se considera presidente do mundo, Donald Trump, foi autorizado pelas urnas a ser o mais podre ser humano que conseguir ser.
Esse final de semana terminei um artigo acadêmico sobre comunicação, estética e política que me fez pensar sobre muitas coisas que estarão no foco dessa cartinha. E, para isso, peço a vocês licença para fazer algo que aqui é pouco usual: citar um filósofo do qual gosto muito, um francês chamado Jacques Rancière.
Ele tem um conceito que nos permite pensar sobre o que é possível de ser dito/compartilhado/experenciado, e por quem, em determinado momento e contexto. E, no meu modo de entender, neste momento, o “indizível” agora está formalmente autorizado a ser dito, sem qualquer tipo de implicação ou consequência. Não se trata de "proibir” alguém de expressar o que pensa ou sente, mas de pensar que as sociedades se articulam de modo a buscarem a paz, não o conflito, zona que está sendo rompida por um novo tipo de discurso de ódio.
Estamos passando por uma mudança na forma como a sociedade articula a visibilidade, a palavra e o poder. Os gestos nazistas, o destaque a cor da pele branca, a perseguição inexplicável a populações que dependem do Estado para se manterem vivas. Tudo isso está conectado num terreno pantanoso, que autoriza também que um vereador de uma pequena cidade cidade de SC, em pleno exercício da sua função, seja intimidado após denunciar segregação racial em uma creche.
Bora de barra de rolagem e vamos aos fatos!
Imagem criada por inteligência artificial
1- (Não) Vi no Jornal
Segregação - Semana passada, vimos viralizar nas redes sociais, a denúncia do vereador Teodoro Adão (MDB) sobre a separação de crianças pretas e pardas e crianças brancas em uma creche de São João Batista. O parlamentar recebeu denúncias de pais e foi, pessoalmente, verificar o que estava acontecendo. Ao chegar lá, confirmou a segregação e fez o que todo político com mandato deveria fazer: agiu, pedindo explicações.
A secretaria de Educação se posicionou mais de uma semana depois, repudiando qualquer forma de preconceito e afirmando que as crianças são tratadas com respeito e igualdade. “A distribuição das turmas foi feita de forma aleatória", disse a nota, desqualificando a denúncia do vereador como “política". Teorodo, entretanto, não recebeu nenhuma resposta oficial, mesmo tendo interpelado o órgão assim que confirmou a denúncia.
A creche também fez uma reunião com os pais para tratar do assunto, sem chamar o vereador, que passou a ser alijado das discussões e debates sobre o tema, ao mesmo tempo que viu uma sessão ser transformada em circo para emparedá-lo.
A vítima é sempre a culpada - Em uma sociedade que opera conforme hegemonias de gênero, de raça e de classe, é fácil formar um consenso de que a vítima é a culpada. Foi o que aconteceu na sessão da câmara de São João Batista no dia 24 de fevereiro, segunda-feira. O Movimento Humaniza, organização que atua justamente na direção de aplacar os efeitos do ódio em episódios como estes, esteve lá e fez um vídeo bem importante expondo essa velha estratégia de acuar denunciantes de violações de direitos humanos.
Mas pense: se eles não estivessem por lá, quantos de nós saberíamos que o vereador Teodoro Adão seria intimidado por Associação de Pais e Professores e por colegas parlamentares simplesmente por ter realizado o seu trabalho e enfrentado um tema espinhoso no país e no mundo?
Denúncias - Conversei com o vereador rapidamente na semana passada, mas a avalanche de repercussões já estava o deixando reticente para compartilhar a história. Ele, no entanto, tal como fez na tribuna na sessão em que fecharam o cerco de intimidações contra ele, reafirmou o que viu. E ele viu turmas com alunos negros e pardos de um lado e de brancos do outro.
Na tribuna, Teodoro Adão também reforçou o fato de ter recebido denúncias de pais e de, mesmo tendo procurado a secretaria de Educação, não ter tido retorno com qualquer resposta sobre o motivo de as turmas estarem separadas. Segundo ele, sua primeira denúncia na Câmara teve uma série de repercussões, entre eles o áudio de uma mãe que ele apresentou ao parlamento e corroborava com a fala do vereador.
Reações - O áudio, entretanto, acabou sendo alvo de um confronto político. O presidente da Câmara, o bolsonarista Gustavo Grimm, recebeu também um conteúdo em áudio da mesma mãe, desmentindo o que havia dito inicialmente e aparentemente arrependida de ter compartilhado sua mensagem que confirmava as denúncias de segregação do vereador Teorodo.
Grimm se exaltou, bateu na mesa, reclamou que a denúncia prejudicou a imagem da cidade e agradeceu a dois assessores da deputada federal extremista Julia Zanatta (PL) por estarem acompanhando a sessão. Ele disse que fez uma análise na documentação das matrículas e que não havia separação por raça. Mas, verdade seja dita: é muito fácil chegar com “provas”depois que a denúncia já ganhou repercussão pública sem que houvesse sequer um retorno formal ao denunciante.
Ministério Público - O caso está sendo acompanhado pelo Ministério Público, que ainda não se manifestou oficialmente. O que está no debate público, entretanto, sugere que há uma aparente normalização da intolerância no Estado, seja na separação de crianças pela cor da pele, seja nas falas do governador sobre a cor da pele branca, seja no vídeo de uma jovem reivindicando seu direito de ter orgulho da sua branquitude.
O que há tão pouco tempo pareceria chocante de ser dito, pelas marcas histórias da escravidão e do nazismo, hoje parece ter um terreno fértil para se propagar como rastilho de pólvora. Quantos de nós seremos atingidos e em quais níveis de violência?
Cassação - O tom ardiloso e manipulatório com que o vereador de São João Batista foi confrontado na sessão também expressa uma ameaça velada: a de que ele, que apenas fez o seu trabalho como parlamentar, possa ser perseguido e até cassado.
Para quem não recorda, em 2023, a parlamentar Maria Tereza Capra foi cassada por ter postado em seu Instagram um vídeo em repúdio a uma manifestação antidemocrática que aconteceu em São Miguel do Oeste, onde ela atua. Os participantes da manifestação fizeram gestos que foram comparados por ela a gestos nazistas. Apesar da forma arbitrária como foi afastada da sua função, ela retornou, por decisão judicial, tendo encerrado o seu terceiro mandato em 2024, ano em que não disputou o pleito. A injustiça foi narrada em documentário.
2 - Deu ruim
População de rua sob ataques - Falei há dias sobre minha preocupação com os vídeos em série de prefeitos catarinenses em ações de perseguição a população de rua em cidades catarinenses. Chamo de perseguição porque, aqui, não devemos usar meias palavras.
A questão é complexa, sim. E revela um problema do mundo todo. Quando morei na Inglaterra, por exemplo, na pequena cidade de Leicester, os homeless também estavam por lá, às margens da sociedade. Por mais que o Estado construa políticas sociais de enfrentamento a isso, o capitalismo sempre será a raiz do problema, somado, é claro, a outras questões também muito complexas, como a do alcoolismo e do vício em drogas.
Numa sociedade evoluída, todo mundo teria casa e ocupação. Mas infelizmente vivemos em outro contexto, marcado por desigualdades e também por preconceito e estigmatização. Assim, sobrou para eles, que já não têm nada, o papel de serem um troféu nas mãos de mandatos extremistas populistas, que além de tudo querem fazer parecer que a população de rua é o principal problema da segurança pública nas suas cidades.
Cadeia de ilusões - É uma cadeia de ilusões: os prefeitos que unem seu “tático” em operações para mandar embora as pessoas em situação de rua das cidades que governam ficam parecendo “gestores com a mão na massa". Além de tudo, dão a aparência de que estão de fato preocupados com a “limpeza” das suas cidades e também com a manutenção da ordem, já que essas pessoas são consideradas um risco nas ruas. Para o cidadão de bem deve dar um alívio danado, mas o que fica por trás do discurso?
Falta de políticas públicas - Em Florianópolis, o fechamento do Restaurante Popular é um sintoma desse quadro de ataques a minorias. O local oferecia três refeições diárias e produzia duas mil por dia, tendo como público alvo pessoas em situação de vulnerabilidade. Bastou o ex-deputado Bruno Souza assumir a secretaria de Assistência Social para uma importante política de segurança alimentar ser simplesmente derrubada sem justificativas.
Souza, vale lembrar, sempre atacou pessoas em situação de rua em suas redes sociais, onde atua como influencer e não se constrange em expor os vulneráveis. Ao invés de lutar para combater e reduzir desigualdades, o tosco secretário está empenhado em aumentá-las: quer proibir também que cozinhas solidárias distribuam alimentos a quem precisa e anunciou que não vai permitir que, quando reaberto (será que vai ser?), o restaurante atenda a população de rua.
Defensoria Pública - Axé & Amém para as instituições que ainda funcionam. A Defensoria Pública do Estado foi para cima da gestão Topázio Neto, ingressando com ação para garantir o direito à alimentação.
“O Restaurante Popular é um serviço essencial para milhares de pessoas que dependem dessa alimentação diária. O fechamento sem qualquer alternativa imediata representa um grave retrocesso social e uma violação ao direito à alimentação adequada”, destacou a defensora pública Ana Paula Fão Fischer.
A ação civil publica questiona a falta de planejamento e transparência na decisão da Prefeitura, “que antecipou a rescisão do contrato com a organização responsável pela gestão do Restaurante Popular em três meses, sem justificativa ou previsão de reabertura do serviço”. A defensoria também “identificou que a Passarela Nego Quirido, apontada pela Prefeitura como alternativa para atender a população em situação de rua, não possui estrutura suficiente para absorver a demanda".
3 - De Olho Neles
Máquina de desinformação - Mais uma vez, Jorginho Mello desinforma Santa Catarina e joga para a plateia bolsonarista! O governador fez um post tentando criticar o governo federal sobre o Plano Safra e ocultar do cidadão a informação de que, sem recursos de Brasília, não existe agricultura no estado.
Só em contratos de financiamento com juros baixos pra agricultura familiar foram 8 bilhões na safra 2023/2024, R$ 500 mi a mais do que na safra anterior, do governo de Jair Bolsonaro. Para se ter uma ideia, o número é 40 vezes superior ao disponibilizado em 2024 no Fundo Estadual de Desenvolvimento Rural gerido por Jorginho. Não adianta fingir que seu estado existe sem o Brasil, governador!
Sem mais o que fazer - Essa semana, duas deputadas extremistas (uma estadual e uma federal) estavam sem nada para fazer fizeram o que gostam muito de fazer: usaram suas redes para atacar jornalistas. O alvo foram dois colegas nomeados para atuar na prefeitura de Balneário Camboriú, com a qual nenhuma delas tem relação formal - sequer são do partido da prefeita Juliana Pavan (PSD). Tentando atiçar a militância mais extremada, não lançaram um único argumento técnico para contestar as nomeações, apenas ódio vazio e barato por já terem sido criticadas em algum momento por eles.
Ana Caroline Campagnolo (PL) e Júlia Zanatta (PL) são muito conhecidas por sua atuação política, mas pouco conhecidas pelos seus feitos práticos que afetam diretamente a vida dos catarinenses. Ambas também têm, em comum, o uso ostensivo das suas verbas de gabinete. É possível acompanhar aqui e aqui.
4 - Craque do Jogo
A ministra Nísia Trindade teve uma missão histórica ao assumir a Saúde: reestruturar o Sistema Únido de Saúde após o colapso e a hecatombe desumana promovida por Jair Bolsonaro. Nos seus últimos dias, anunciou medicamentos gratuitos via SUS na Farmácia Popular e também a produção em larga escala e dose única da vacina nacional contra a dengue.
Foi saída num dos primeiros gestos políticos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na reforma ministerial, que deve abrir mais espaço para o Centrão em meio a números negativos na sua pesquisa de popularidade. Alexandre Padilha é do PT, mas, por ser um nome do grupo político, pode agrupar representantes de outras siglas na distribuição de cargos de um dos ministérios mais importantes da estrutura do Estado.
5 - Considerações afinais
Comecei esse texto falando do fértil terreno para o extremismo por aqui e pelo mundo e vou fechar essa cartinha com uma sentença: vai ser difícil sair desse buraco. A onda/avalanche da extrema direita poupou a Alemanha de um Parlamento ultra conservador, mas ainda assim reverteu-o à direita.
No Brasil, ao contrário da popularidade de Lula, que está caindo, governadores de direita estão sendo impulsionados, fazendo com que seus nomes também fiquem cotados para 2026. Além disso, há uma cada vez mais clara ação do governo Trump contra o Brasil (por enquanto representado pelo Supremo Tribunal Federal), tentando influenciar num possível resultado no próximo pleito.
Nada parece fácil somado a esse terreno discursivo em que a intolerância e o ataque às minorias vai ganhando destaque, com poucos freios disponíveis. Também politizados, os órgãos de controle parecem preocupados com outros tipos de problemas.
É terra arrasada? Não! O filósofo que citei ali no início do texto também apontava o dissenso como uma possibilidade de ruptura na ordem estabelecida, com novas vozes transgredindo os espaços possíveis e apontando para novos modos de dizer. Minha aposta é que, com informação de qualidade, a gente consiga compor esse dissenso. Até 2026, teremos muito o que conversar.
Até semana que vem e bom Carnaval! (e dedos cruzados pela prisão do Jair e pela vitória no Oscar)
Que loucura essa história da escola. Esse vereador é um herói.
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O nazifascismo comendo solto e fora alguns poucos, parece que está tudo normal. Cadê as reportagens da "grande mídia"? Não tem e não terá, pois eles defendem e apoiam a extrema-direita. Triste.